quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Monte Longo IV

Dias depois de levar o abanão questionou o seu coração. Como foi possível ter permitido aquela invasão!? Monte Longo deu largas à frustração, gotas de dor deixavam transparecer a grande desilusão.
Assim falava mas não se desesperava, sentia que os braços enormes do divino na alegria ou na tristeza o amparavam. A música, as flores, as silvas, as amoras, até mesmo as pessoas por detrás das máscaras eram para ele encantadoras. Que mais havia de querer? Cada um era o que é! Ponto final. Nada podia fazer. Assim decorriam os dias, sem grandes melhorias. Uns falavam, outros ouviam. Era assim que se entendiam. Detestava quando lhe invadiam a privacidade em nome dessa estúpida vaidade. Desde que Golias, o barão, insistiu em comandar o pelotão, tudo se havia transformado num enorme turbilhão. Ainda assim, no meio de tanta insanidade insistia no defeito de querer que as conversas fossem minimamente inteligentes, tivessem algum fundo de verdade.
O filho do capataz, que conheceu tempos atrás, era bom rapaz, gentil, educado, tinha um bom coração, mas havia caído sobre ele não sabia bem porquê uma grande aflição. A qualquer hora, em qualquer lugar, em qualquer dia por onde se movia um grupo de crianças malfeitoras o agredia. Certo dia, já cansado de os aturar, rogou ao Senhor se o podia livrar, afastar os agressores, para poder sossegar. Quem semeia ventos colhe tempestades, gritou do alto do céu sua majestade. Tens o sol, as estrelas, os rios, as plantas, o mar, sete dias na semana para comer, trabalhar, orar ou amar. Desanimado, o rapaz encurvado ficou lá um bom bocado. Ao fundo da alameda, já seu caminho seguia, levando na sacola as pedras com que se defendia, sentiu bem dentro do peito a luz divina o protegia.
Também ele, Monte Longo, apesar de ser durão agora mais do que nunca precisava de protecção. Desde que Golias chegou que muita coisa mudou. A esperança que tudo alcança se extraviou.
Primeiro foi o raio que caiu na central de alta tensão cortando a luz à povoação. Depois veio a seca que assolou toda região tirando ao mais venturoso a disposição. O calor excessivo nem sequer deixava pensar, a água na fonte já estava a escassear. O único barco, encalhado junto à margem, não podia navegar. Teria que esperar pelas chuvas para poder embarcar. Já não sabia o que fazer, talvez fosse boa ideia fazer o percurso a pé, partir ao anoitecer. Enquanto as feras dormiam, guiado pelas estrelas, descer os altos penhascos, antes de adoecer. Ao chegar perto do lago, apanhar o autocarro que percorre os verdes prados junto ao rio refrescante, saciar a sua sede na fonte de água viva que fica mais adiante.

Filomena Magalhães


quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Monte Longo

Logo a seguir ao jantar, o Sr. Monte Longo sentou-se na varanda a observar as luzes a descer a serra umas atrás das outras a tremelicar. A entrecortar o silêncio que com a noite tende a se instalar, passava de vez em quando uma moto a todo o gás a berrar. Ofegante rente aos muros do jardim a farejar andava o cão que passara o dia ao sol a ressonar.
Nas últimas horas alguma melancolia crescia e a ideia de que não conhecia ninguém que só fazia o que queria não mais o abandonou nesse dia.
Sentia-se tão bem, naquele lugar que desejava para sempre lá ficar. Infelizmente, os deveres chamavam-no, tinha mesmo que abalar.
Ali ficou por longo tempo na cadeira a baloiçar até que lembranças do passado o vieram visitar.
A família de grilos no monte já roucos de tanto cantar bem podia testemunhar o quanto ele já tinha sido feliz naquele lugar.
Debaixo do mesmo sol, em cima do mesmo chão, foi num verão igual a este que viveu essa curta mas intensa paixão.
Quem lhe chamou atenção de que ela existia tinha sido um velho varão de casaco pelas costas e Kentucky na mão que sempre que a via, por entre os arbustos do muro da casa onde vivia, com a voz rouquenha dizia:
Aí vai a curía!
A moça não gostava do que ouvia, seguia adiante e nada respondia. O homem achava graça, atirava gargalhadas e tossia.
Como sempre, no verão, a prima da moça que morava em Paris chegou, abriu a mala e pelo quarto um cheiro a alfazema se espalhou.
Logo que soube da sua chegada o Sr. Monte Longo mandou-lhe um recado pela empregada, que viessem as duas saborear uma deliciosa churrascada. A prima que ele já conhecia de outros eventos da freguesia chegou com ela à hora marcada junto ao portão onde ele ansioso as aguardava.
Enquanto o churrasco durou, o olhar dela ardentemente procurou. Quando ao final do dia em passo lento a acompanhou, trocaram pontos de vista dos jornais e das revistas um ao outro escutou. Envolto numa nuvem branca que vinha a passar estava o cupido lá em cima a espreitar. Aguardava a melhor hora de atirar a flecha no arco já pronta a disparar.
Quando em silêncio as mãos estavam a beijar a flecha cortou o ar, os dois logo sentiram os seus corações dentro do peito como um íman se enlaçar.
 De volta a casa, a imagem dela de saia rodada e blusa estampada no pensamento levou gravada.
Para espanto do gato e do cão que presenciavam tudo com muita atenção, andou com ela todo o verão debaixo do sol escaldante, imitou a onda hippie, num estilo extravagante.
De cabelo ao vento, simples mas educada, só o via a ele não via mais nada. Ele pensava nela, na fresca manhã, à noite ao relento ou deitado no divã. Olhava as estrelas com muita emoção lembrando o romance de Isolda e Tristão. Passeou com ela na areia do mar, no quintal, no monte, em todo lugar. Quando o sol deixou de aquecer, as primeiras chuvas começaram a aparecer, ela tinha feito as malas, também tinha ido embora, já não a podia ver. Lembrava-se ainda de muito desanimado ter lido “Mandingo” no sofá deitado. Ouviu Redding e Gainsbourg sem parar, na tentativa de não se lembrar.

Ficou na varanda longo tempo a recordar até que o relógio na sala de jantar o fez regressar.
Abandonou a cadeira, entrou na sala para escutar músicas do tempo em que a tinha conhecido, aquele momento queria prolongar. Fechou os olhos para a ver a dançar à volta da mesa a rodopiar. Com o LP ainda a rodar, foi dormir e descansar para daí algumas horas poder viajar. Ela ficaria para sempre no passado junto aos discos de vinil que era o seu lugar.

domingo, 5 de agosto de 2012

Árvore do Outono

 Nesse dia de outono em que as aves migratórias haviam partido, a bicharada invernado, as folhas das árvores caído, o homem da harmónica de boca desde o final da tarde emitia um timbre sonoro belo e divertido. A sua habilidade natural permitia-lhe improvisar de acordo com a sensibilidade e a estação que estivesse atravessar. Nesse dia o som da música que estava a tocar reportava à terra, ao outono e às chuvas que estavam prestes a chegar. Produzia uma estranha sinfonia que à medida que ele se afastava como um rastro de fumo se esmorecia. Com a sensação de aconchego no coração a se instalar, os olhos de quem o escutava vinham à porta espreitar. Esse domingo durara, as horas correram muito devagar. Finalmente, as areias do caminho, de dia ao sol a cintilar, deram lugar às estrelas no céu a brilhar. Os poucos habitantes daquele lugar, aperceberam-se, desde o anoitecer, circular, uma energia diferente no ar.
Antes de se deitar, na soleira ao luar, sentado a cismar, com a humanidade cada vez mais longe da verdade, o homem da harmónica ouvia a banda de música ao longe a tocar. Os músicos, já cansados davam os últimos acordes na noitada da festa da Senhora do Pilar.
 Enquanto tudo isto acontecia, a filha da Luzia, dentro da carvalha oca, amava e sorria. Do moço que descia a colina e só ela conhecia, apenas as costas do casaco se via. Nesse mesmo instante, na casa de pedra, da figueira grande, o relógio biológico tocava sem parar, era tempo de nascer, sair da cuba da mãe vir respirar outro ar. Os animais que por lá moravam, alguns roedores que se embrenhavam, mesmo o galo que na alvorada deveria cantar. Poder-se-ia jurar, estavam todos tristes, com vontade de chorar.
Com sangue por todo o lado, não houve volta a dar, nasceram os pés primeiro, já estava pronta a andar. Não fosse o anjo da guarda estar ao lado e a micas parteira ajudado, bem teria definhado. De tanto estrebuchar, o pequeno órgão pulsante ficou fendido, difícil de afinar. Depois do susto passar o médico assistente tiveram que chamar. Só ele poderia dizer o que se iria passar. O veredicto foi dito. Poderia trabalhar, estudar, andar, até cantar.” Enquanto viver, deverá comer legumes para se fortalecer. Ao se distrair, o vírus poderá atacar e o relógio parar.”
Vivia atormentada sem saber o que fazer, comer tanta fava e ervilha transtornava-lhe o viver. Só biju ou pão de ovelhinha gostava de tragar, o de milho ficava na boca numa bola de brincar. A mãe, embirrou com isso. Para a assustar e melhor a dominar levou-a a ver a criança, que ia a enterrar. Se tivesse morrido, pensava num gemido, não a teriam aborrecido, nem o seu orgulho teria sido ferido.
As árvores, em tom exaltado, gritaram por todo o lado, disseram que não. Isso não era nada. Iriam transforma-la numa fada. Seria feliz para sempre com um novo coração.
F. M.